No
litoral cearense, há alunos do ensino médio que já não conseguem mais
acompanhar as aulas online, porque têm de trabalhar durante o dia inteiro. No
interior do Piauí, educadores recorrem a visitas domésticas e vídeos
motivadores para tentar atrair os estudantes que não têm aparecido nos
encontros virtuais. Em São Paulo, alunos de baixa renda atendidos por uma
organização sem fins lucrativos temiam "voltar para a estaca zero"
nos estudos em meio à pandemia.
Em
todos esses lugares, são vários os relatos de estudantes sem equipamentos ou
conexão à internet, famílias em situação econômica cada vez mais frágil,
professores com crescentes dificuldades em manter os alunos engajados nas aulas
remotas e pais tanto ansiosos quanto temerosos pela perspectiva da volta às
aulas presenciais — marcada, em alguns Estados, para agosto ou setembro.
O
resultado dessa combinação é que cresce o temor, entre educadores e
pesquisadores, de que as circunstâncias impostas pela pandemia façam com que
mais estudantes simplesmente desistam da escola neste ano, engordando as
estatísticas de evasão escolar no Brasil.
As
falhas do ensino da matemática expostas pela pandemia do coronavírus
"Em
uma turma do 1° ano (do ensino médio), dos 40 alunos, só uns 15 têm
participado" das aulas remotas, diz à BBC News Brasil a professora de
biologia Joseline Souza Nascimento, que dá aulas na rede estadual na cidade de
Cascavel, na costa do Ceará.
A
equipe da escola chamou psicólogos para darem palestras aos estudantes e fez
apostilas aos alunos que não têm internet ou celular, mas teme que alguns percam
a motivação ou as condições de voltarem à escola.
"Muitos
são filhos de pais autônomos, como pedreiros ou pescadores. Alguns até têm
celular para assistir às aulas, mas estão trabalhando manhã e tarde. Com
certeza dá medo de eles não voltarem, pelo impasse (de perder a renda extra) e
pela ideia de 'não vou conseguir aprender mais'", prossegue Nascimento.
Pais
e mães dos alunos, diz ela, também manifestaram receio de mandar os filhos de
volta à escola quando for hora de reabrir, por temer o contágio pelo
coronavírus.
Para
completar, "na escola temos uma sala de EJA (educação para jovens e
adultos). De 20 alunos, só três ficaram. Muitos acham que o ano está perdido e
não sabem se vão voltar."
O
preço que o Brasil paga pela evasão
A
evasão escolar é um problema crônico, com altos custos humanos, sociais e
econômicos para o Brasil.
Dos
quase 50 milhões de brasileiros entre 14 e 29 anos, mais de 20% — ou seja, 10,1
milhões de jovens — não completaram alguma das etapas da educação básica (que
engloba os ensinos fundamental e médio), segundo a pesquisa Pnad Contínua 2019,
divulgada na última quarta-feira (15) pelo IBGE.
As
principais causas apontadas para o abandono escolar foram necessidade de
trabalhar, desinteresse pelas aulas e gravidez. A ampla maioria (71,7%) desse
contingente de jovens é negra ou parda.
Por
cada jovem que abandona a escola, o Brasil perde R$ 372 mil reais por ano,
apontam cálculos de Ricardo Paes de Barros, economista-chefe do Instituto
Ayrton Senna, em estudo feito neste mês em parceria do Insper com a Fundação
Roberto Marinho.
No
total, o custo anual da evasão escolar é de R$ 214 bilhões, ou 3% do PIB
(Produto Interno Bruto), com base na redução das possibilidades de emprego,
renda e retorno para a sociedade das pessoas que não concluem a educação
básica.
"Isso
porque os jovens que têm a educação básica completa passam, em média, mais
tempo de sua vida produtiva ocupados e em empregos formais, com maior
remuneração; têm maior expectativa de vida com qualidade — estima-se que cada
jovem com educação básica viverá quatro anos de vida a mais que um jovem que
não terminou a escolaridade — e tendem a ter um menor envolvimento em
atividades violentas, como homicídios", diz o estudo.
"O
cálculo é de que a evasão representa uma perda de 26% do valor da vida de um
jovem."
A
despeito desse enorme contingente de jovens que abandonaram a escola, o Brasil
havia conseguido alguns avanços positivos na última década: a taxa de abandono
do ensino médio na rede pública de ensino havia caído 7 pontos percentuais, de
13,7% em 2008 para 6,7% em 2018, segundo dados oficiais compilados pelo
Observatório de Educação do Instituto Unibanco.
A
taxa de jovens de 15 a 17 anos fora da escola, embora alta (8,8% em 2018),
também vinha em queda.
Agora,
porém, existe o temor de que alguns desses ganhos possam ser perdidos no
pós-pandemia, diante de uma confluência de pressões negativas.
'Depois
que ele sai, é difícil trazê-lo de volta'
"Muitos
jovens têm pais que são trabalhadores informais e tiveram uma queda abrupta na
renda. Então eles próprios podem ser os únicos capazes de gerar renda para a
família", explica à BBC News Brasil Ricardo Henriques,
superintendente-executivo do Instituto Unibanco.
Considerando
o histórico brasileiro de índices baixos de aprendizado nos anos finais do
ensino fundamental e ao longo do ensino médio, além de um cenário de
desinteresse dos jovens pelas aulas, "este longo tempo longe da escola
pode acabar sendo o empurrão final (para a evasão), para a sensação de que 'já
não estava interessante, então não vale a pena' prosseguir na escola",
agrega Henriques.
"E
depois que o aluno sai, é muito maior o esforço para trazê-lo de volta."
Em
algumas regiões pobres do Brasil, como áreas do Nordeste, Henriques teme por um
outro impacto da covid-19: muitos dos idosos vítimas da doença eram (por meio
de suas pensões) responsáveis por prover grande parte da renda da família. Isso
também deve aumentar a pressão sobre jovens para que migrem ao mercado de
trabalho.
Essa
entrada precoce no ambiente profissional, em um momento particularmente ruim da
economia, pode cobrar seu preço ao longo das décadas seguintes da vida desse
jovem: sem a escolaridade, ficará mais difícil conseguir empregos qualificados.
"O
prêmio pela educação ainda é alto no Brasil, mesmo se essa educação for ruim.
Completar o ensino médio brasileiro define uma trajetória de vida muito mais
positiva do que não completá-lo, quanto a mobilidade de vida", diz
Henriques.
Dificuldades
de acesso às aulas
Com
o celular quebrado e sem computador para acompanhar as aulas remotas, Sabrina
Oliveira Lopes, 17, estudante do 3° ano do ensino médio na rede estadual de São
Paulo, perdeu o ânimo quando as aulas passaram ao ambiente remoto por conta da
pandemia e chegou perto de não conseguir acompanhar os estudos.
"Ficou
meio bagunçado. Algumas lições estavam em uma rede social; outras estavam em
outra. Não acho que eu teria desistido tão fácil da escola, mas a gente (alunos
da turma) meio que entrou em desespero", conta à BBC News Brasil.
Sabrina
acabou retomando o ímpeto com a ajuda dos professores e de um notebook doado
pelo Instituto Proa, organização social onde fazia um curso extra.
"Não
tem muita gente nas aulas online (da escola). Tinha no começo, mas foi
baixando. Teria que chamar um por um, ligar para eles. Sei que é trabalhoso,
mas vale a pena. Você se sente acolhido, sente que não é só mais um", diz
ela.
Ela
acabou perseverando na escola, também formou-se no curso do Proa e agora estuda
com vistas para o Enem e para a faculdade — ela pensa em cursar administração
de empresas.
Tudo
isso também precisou ser transportado para o ambiente virtual quando veio a
pandemia, além de doações de equipamentos e cestas básicas aos alunos.
"A
primeira aula online foi só para ouvi-los soltarem suas angústias", conta
Rodrigo Dib, executivo-chefe do Proa. E entre essas angústias, havia frases
como "meu pai perdeu o emprego"; "não mais sei o que faço da
minha vida"; "não vai dar mais, vou voltar para a estaca zero".
"Tivemos
que agir super-rápido e fazer com que eles continuassem acreditando. O mundo
depois disto (pandemia) vai ser mais desafiador, e eles tinham que continuar,
por eles próprios", diz Dib.
A
centenas de quilômetros de distância dali, em Bocaina, no interior do Piauí, a
professora de matemática Maura Silva vê angústias semelhantes entre seus alunos
do ensino médio.
"No
primeiro mês, eles tiveram participação muito ativa nas aulas online. No
segundo mês, pararam de dar retorno das atividades. Alguns já desistiram das
aulas remotas", lamenta Silva.
"Estamos
sempre em contato com eles, pedindo calma e paciência neste período. (Mas) o
atendimento remoto deixa um vazio grande, nem sempre conseguimos falar com
todos de modo individual."
A
professora pediu a alguns alunos que fizessem vídeos motivacionais para os
colegas, enquanto a direção da escola fez visitas domiciliares aos estudantes
sem acesso à internet.
Mas
o cenário é de "muita dificuldade", diz ela. "Alguns pensam em
refazer o ano letivo, porque acham que este não está sendo útil."
Uma
pesquisa do Datafolha feita em junho com pais ou responsáveis de 1,5 mil
estudantes da rede pública do país apontou que um índice relativamente alto
deles (79%) estava recebendo atividades não presenciais de suas escolas.
Mas
quase um terço dos pais temia que seus filhos desistissem da escola se não
conseguissem acompanhar as aulas em casa. Quase dois terços dos responsáveis
disseram que seus filhos estão ansiosos neste período e 37% deles contaram que
os filhos estão tristes, aponta a pesquisa, encomendada pelas fundações Lemann,
Itau Social e Imaginable Futures.
O
ineditismo da pandemia atual impede a comparação com outros momentos da
história, mas locais que viveram catástrofes e epidemias (como o oeste da
África durante o surto de ebola entre 2013 e 2016) costumam sofrer
posteriormente o aumento da evasão escolar.
Em
palestra online no evento Bett Educar, no final de junho, o
secretário-executivo de Educação do Estado de São Paulo, Haroldo Rocha, citou a
desconexão dos alunos e o possível aumento do abandono escolar como as grandes
preocupações atuais.
Como
vai ser a volta à escola?
Existe,
também, o receio de como vai ser a volta às aulas com as exigências sanitárias
necessárias para impedir o contágio do coronavírus.
Para
Carlos Roberto Cardoso, diretor de uma escola de ensino fundamental em uma das
áreas mais carentes da zona leste da capital paulista, "a pandemia só
acentuou a dura realidade" vivida por famílias e escolas vulneráveis.
Entre
os educadores, diz ele, há muitas dúvidas de como vai ser possível manter o
distanciamento social e as regras de higiene, por exemplo na alimentação dos
estudantes e na limpeza de banheiros.
Na
pesquisa do Datafolha, os pais de 87% das crianças disseram que elas temem a
contaminação pelo coronavírus na volta às aulas.
"Tenho
três pessoas para fazer a limpeza em uma escola grande (cerca de 900
alunos)", diz Cardoso. "E como controlar (o espalhamento do vírus) em
um ambiente tão fechado como são as escolas públicas? Tenho lido muitos relatos
de pais, e não só os daqui da escola, inseguros com a questão sanitária. Li a
postagem de um na internet dizendo 'meu filho perde o ano, mas não volta para a
escola tão cedo'."
No
Estado de São Paulo, a previsão é de que a volta às aulas presenciais comece em
8 de setembro, escalonada e sujeita às decisões individuais de cada rede
municipal de ensino. Na capital paulista, a Secretaria Municipal de Educação
informa que ainda está definindo as datas do retorno e o secretário, Bruno
Caetano, está se reunindo virtualmente com todas as diretorias regionais de
ensino para ouvir suas preocupações.
Haverá,
segundo a pasta, distribuição de kits individuais com máscara, sabonete e copo,
além de álcool gel, controle de temperatura e demarcação de lugares.
Sobre
o tamanho das equipes de limpeza, a assessoria da secretaria diz em nota que
"conforme está descrito na minuta do protocolo de retorno às aulas, os
contratos de limpeza serão revistos. E as empresas precisarão também se adequar
a essa nova realidade sanitária". A assessoria diz também que já estão
ocorrendo reuniões entre a prestadora de serviço e a diretoria regional de
ensino "para pensarem formas de adequar o protocolo seguido pela
secretaria ao novo modelo de higienização que será adotada no pós
pandemia" na escola de Cardoso.
Problemas
antigos
Para
além das questões de higiene, especialistas em educação preveem que, para
conter a alta na evasão, será necessário buscar ativamente os alunos e lidar
com problemas antigos e complexos do ensino brasileiro — por exemplo, reduzindo
os abismos da desigualdade social do país, melhorando o ambiente escolar,
acolhendo emocionalmente alunos e professores, e fazendo com que o conteúdo
ensinado fique mais próximo da realidade e das necessidades dos estudantes e do
mundo atual.
"A
cada 100 crianças brasileiras que entram no ensino fundamental, apenas 65
concluem" os estudos, afirma Ricardo Henriques, do Instituto Unibanco.
"Os que terminam, já são sobreviventes."
Na
volta às aulas presenciais, opina ele, será preciso lembrar que, mesmo que os
alunos vão à escola, "mantê-los ali vai ser mais difícil do que
antes".
"Os
estímulos negativos para a evasão vão continuar intensificados e os alunos vão
estar mais vulneráveis. Se o aluno não se sentir acolhido, se houver um clima
escolar ruim, com bullying, ele pode ir embora", diz.
"E
é algo duradouro, que não vai se resolver em uma semana, porque vidas inteiras
de famílias vão se reconfigurar (por causa da pandemia)."
Fonte:
Paula Adamo Idoeta - BBC News Brasil em São Paulo. * NEWSRO
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