Alunos
da rede pública de todo o Brasil vivem a sensação de que 2020 será um ano
perdido em suas trajetórias escolares. Já os professores relatam o drama de não
terem a formação e a estrutura necessárias para oferecer o conteúdo remoto.
Quando não estão totalmente sem conexão, estudantes e mestres recorrem ao
improviso de aulas via redes sociais, por exemplo.
O
retrato da desigualdade na educação pública do Brasil durante a pandemia de
Covid-19 é desanimador, como contam também os pais.
"Está
sendo uma educação de faz de conta", afirma Graciela Fell, que tem uma
filha matriculada na rede estadual de Santa Catarina. Já a professora Tassiane
Barreto, de Sergipe, avalia: "A rede pública parou”.
O
cenário de incertezas apontado pela comunidade escolar se reflete nos números
de um levantamento nacional do G1 junto aos estados ao Distrito Federal. São
soluções adotadas apenas localmente, diante de realidades muitos distintas
entre si.
O balanço mostra que:
A
decisão de suspender as aulas presenciais foi tomada pelas redes de ensino
entre 11 e 23 de março.
Desde
então, 15 estados decretaram recesso ou férias para ganhar tempo e encontrar
alternativas: Alagoas, Amapá, Espírito Santo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul,
Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa
Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins.
Além
do Distrito Federal, apenas 11 estados suspenderam as aulas: Acre, Amazonas,
Bahia, Ceará, Goiás, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia
e Roraima.
16
estados planejam considerar atividades remotas como carga horária do ano letivo
– equivalendo-as às aulas presenciais: AC, AP, AM, CE, GO, MA, MG, MS, PB, PR,
PI, RN, RS, RR, SP e SC.
Além
do DF, 7 estados declararam que não vão usar a educação remota como carga
horária do ano letivo: AL, BA, DF, ES, MT, PA, SE e TO. PE não decidiu ainda;
RO e RJ não responderam.
MG
foi último estado a adotar alguma atividade; o conteúdo passou a ser
transmitido nesta segunda-feira (18).
A
suspensão de aulas não encontrou uma resposta coordenada: todos os estados e o
DF adotaram atividades remotas, mas cada estado adotou uma maneira de repassar
o conteúdo – plataformas virtuais, sites, TV aberta e até por meio do WhatsApp.
Nas
redes municipais, não ocorreu o mesmo movimento: ao menos sete capitais não
adotaram nenhuma atividade remota.
O
levantamento do G1 aponta que nenhuma rede estadual de ensino sabe como será a
retomada. Questionadas, elas afirmaram não saber se haverá aulas aos sábados
para repor possíveis conteúdos ou se pretendem adotar carga horária estendida.
Em geral, elas afirmam que avaliam as alternativas.
A
pedagoga Evelise Maria Labatut Portilho, pós-doutora em Educação e professora
da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), avalia que não é hora
de pensar em perdas de conteúdo, mas, sim, na formação das crianças.
“Eu
não me preocuparia com o conteúdo. Peço que conversem sobre esse momento
histórico com as crianças, mostrem o que é o ser humano, a questão da
solidariedade, do respeito, o que é ficar em isolamento, o que é o vírus, a
higiene. Tudo é conteúdo.”
Queixas de alunos e
professores
Nesta
quarta-feira (20), o Ministério da Educação (MEC) e o Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) anunciaram que o Exame
Nacional do Ensino Médio (Enem) será adiado "de 30 a 60 dias em relação ao
que foi previsto nos editais". A prova, originalmente, ocorreria em
novembro.
Alunos
tirados da rotina e deixados em casa lamentam não só a falta de planos
pedagógicos estruturados, mas também a ausência de estrutura.
“Sinto
que estou andando para trás em relação ao Enem”, afirma Túlio Salvador Morais
Novaes, de 19 anos, aluno da rede estadual do RJ, sem computador, celular e
internet para buscar o conteúdo. É uma realidade que não depende do CEP ou do
engajamento pessoal de cada estudante.
Para
os professores, a oferta não atende ao que se espera, sobretudo nos anos finais
da educação básica, já que há problemas de acesso às plataformas.
"O
ensino remoto não está estão preparando ninguém para o Enem”, diz Renata
Rosseo, de 39 anos, professora no Rio. "Eles [alunos] não têm celular da
forma como as pessoas pensam – como um celular para cada um. Às vezes, tem um
celular compartilhado para cada casa."
Para
o professor de filosofia e história da rede estadual de Mogi das Cruzes Álvaro
Dias, a procura pelas aulas vêm diminuindo.
No
estado de SP, dos 3,6 milhões de estudantes da rede estadual, 1,6 milhão
acessou a plataforma criada durante o recesso.
"As
redes podem fingir que estão ensinado, mas os alunos não vão fingir que estão
aprendendo", analisa Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (USP) e membro da Campanha Nacional pelo Direito à
Educação.
No
PR, professores estimam que só 30% dos estudantes estão assistindo às
videoaulas e entregando as atividades propostas pelo aplicativo.
O
relato é semelhante em Mato Grosso do Sul. "O professor não estava
preparado totalmente para aquilo tão repentinamente. Alguns tiveram problemas,
assistiram vídeos para aprender a dar videoaulas e tudo mais. Mas 40% é a
preparação da aula, estudo do professor e tal. Os outros 60%, é do feedback do
aluno e aí que fica puxado de saber", afirma Cristiane Zorzatto, professora
de biologia.
Em
PE, profissionais que trabalham na rede municipal do Recife e que não quiseram
se identificar, disseram que não há sequer orientações aos trabalhadores sobre
como ocorrerá o esquema de reposição de aulas. E o relato do jovem José Miguel
Canuto, de 12 anos, demonstra esse cenário.
"Desde
o começo da pandemia, estou sem aulas. Não tive, até agora, nenhuma aula
on-line, e o pessoal da escola também não falou nada com a gente sobre alguma
atividade fora da escola. A única coisa que eu recebi foi um livro de
português, quando minha mãe foi buscar a cesta básica da prefeitura",
disse o estudante.
Falta
de estrutura pedagógica
Há
inúmeros relatos pelo país de situações improvisadas para (tentar) transmitir
aos alunos o conteúdo das matérias.
No
RS, a professora Fabiane Maciel Viecilli, que dá aulas de história, filosofia e
sociologia em uma escola estadual de Porto Alegre, conta que os educadores
enviam as atividades semanais por WhatsApp a duas pessoas da vice-direção – e
elas encaminham aos pais e alunos.
"Foi
definido, pela escola, que as atividades valerão também como presença, mas só
serão entregues no retorno das aulas. As dúvidas fazem o caminho inverso. Aluno
não entendeu, passa para as vices e elas nos repassam. Trem complicado",
afirma a professora.
Em
outro caso, a rede social virou alternativa. O professor de história Rafael
Gonçalves, que dá aula para o ensino fundamental em Porto Alegre, disse que, no
início, foram entregues aos alunos materiais físicos, como apostilas. Mas nem
todos conseguiram buscar na escola. “[Colocamos o conteúdo] na página do
Facebook.”
A
falta de padrão se verifica até mesmo em relação a um mesmo aluno.
"Estou
passando por três situações: tem matéria em que o professor criou até um canal
no YouTube para melhorar a explicação; com outras, o conteúdo passado não está
relacionado com a matéria diretamente; e, em outras, para obter ajuda, tenho
que enviar e-mail para o professor, que em alguns casos não é correspondido. Do
meu ponto de vista, o ensino público não está preparado para o EAD [ensino à
distância]", afirma Guilherme Soares Machado, de 14 anos, estudante de SC.
A
dinâmica das aulas remotas causou estranheza em Caio Rogério, de 17 anos,
morador da Rocinha, no Rio.
“A
maior dificuldade que eu estou tendo é que as matérias são excessivas, são
gigantes. Quando você vai tirar uma dúvida com o professor, até ele responder,
a nossa dúvida já passou. Isso é cansativo, até para os professores”, afirma.
Em
MG, após ficarem dois meses sem aula ou qualquer atividade, os cerca de 380 mil
estudantes da rede pública estadual começaram nesta semana o ensino remoto.
"Eu
não gostei das aulas. Achei muito superficial. E o material escrito, então, é
uma vergonha", disse Fernando Alves, de 17 anos, que acompanhou as aulas
desta segunda pelo canal da Rede Minas no YouTube.
"É
uma questão de alfabetização digital. Muitos dos nossos alunos nunca passaram
por isso de verdade", analisa o professor de arte Jean Carlos Franzoi
Dernis, que dá aula em duas escolas estaduais no PR.
Para
os professores, a sensação não é diferente. “Estou em um grupo de teletrabalho.
Estamos perdidos", disse a professora Diliana de Barros Lisboa, da rede
estadual de MG. "Nós somos carentes de papel, de impressora, de salário.
Como organizar aulas remotas em ambiente que já é precário?”, argumenta ela.
No
AC, a gestora Laura Geane Lopes de Oliveira fala que ainda é um desafio colocar
em prática as atividades porque têm alunos que não querem, têm os que
participam e têm aqueles que não têm condições nem de ir pegar o material
disponibilizado para quem não tem acesso à internet na escola.
“Estamos
em processo de entrega do material, porque dá trabalho, tem que fazer
levantamento, entregar com cuidado, saber quantos alunos vão precisar do
material, tudo de forma segura. Hoje o nosso alcance do conteúdo de estudo e
entrega de material está em 80% dos alunos, nós não temos 100% de alcance
porque tem estudante que simplesmente não quer ou não tem como ir pegar o
material”, lamenta Laura.
Ociosidade
e falta de recursos
Em
SC, a aluna Eduarda Martins Schmidt, de 17 anos, que está no 3º ano do ensino
médio na rede estadual, acredita que os trabalhos poderiam ser solicitados com
mais frequência, ocupando mais dias de semana com as demandas curriculares.
“Fora
o Classroom [aplicativo do Google], nada de 'live', material gravado, auxílio
no WhatsApp, somente resumo de textos, atividades de assinalar e outras com
perguntas simples. Temos tarefas duas vezes por semana, no máximo, que são as
entregas de trabalhos, dois ou três no mesmo dia”, diz a aluna.
No
PR, a professora Cinthya Carvalho, que dá aula para os alunos do 2º e 4º ano,
relata a falta do contato e da rotina é uma dificuldade – e ela se impõe a
despeito da qualidade dos materiais ou do acesso fácil a eles.
“Ainda
temos um olhar distante, porque muitas [crianças] estão sendo auxiliadas pelos
pais, então a gente não sabe o quanto elas realmente aprenderam.”
Graciela
Fell, também de SC, tem a filha de 11 anos matriculada em uma escola da rede
estadual.
"Vejo
a dificuldade de fazer o papel de professora, ao mesmo tempo percebo que minha
filha vai chegar ao próximo ano sem entender de fato algumas disciplinas,
principalmente as exatas. Ela estuda numa escola pública, com colegas carentes,
certamente muitos pais não conseguem ajudar os filhos. Está sendo uma educação
de faz de conta", diz.
Diferença
clara entre rede pública e privada
A
professora de português Tassiane Barreto, de Aracaju, diz que é clara a
diferença entre a estrutura acessível aos alunos da rede pública e a da rede
privada – ela leciona em ambas.
Atualmente
em período de férias antecipadas, ela conta que, logo no começo da quarentena,
tentou manter contato com os alunos. "Mas esbarramos na falta de
estrutura. Uns cinco alunos conseguiram acompanhar, o resto não tinha internet,
nada. A rede pública parou”, lamenta.
"Cada
casa é uma realidade e os pais estão tendo de rebolar para dar conta de tudo
também, tendo em vista o contexto atual. Portanto, apesar de ter me
surpreendido com a devolutiva dos alunos em relação às aulas on-line, não é
momento de criar paranoias, grandes expectativas. [É preciso] Respeitar os
limites de todos: alunos, pais, professores, escola...", diz a professora.
Educação
remota como carga horária
Em
abril, uma portaria publicada pelo governo federal retirou a obrigatoriedade de
dias letivos, mas manteve as horas mínimas em 2020.
No
AC, AP, AM, CE, GO, MG, MA, MS, PB, PR, PI, RN, RS, RR, SP e SC, as aulas
remotas vão equivaler às presenciais.
AL,
BA, DF, ES, MT, PA, SE e TO decidiram não adotar as atividades remotas como
carga horária. PE está em situação indefinida. E RO e RJ não responderam até a
publicação desta reportagem.
A
organização às pressas da educação remota e a incerteza sobre como os alunos
estão sendo atendidos coloca em dúvidas o real aproveitamento do ano letivo.
Daniel
Cara, membro da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, é crítico à medida.
"Não
sou contrário ao uso de tecnologia, mas não dá para contabilizar como ano
letivo. Sou favorável ao uso da tecnologia e das ferramentas de educação a
distância para manter o contato com alunos, e de ter instrumentos de equidade,
como a distribuição de equipamentos eletrônicos, para todos terem acesso à
educação, mas não dá para validar como 'ano letivo'", afirma o educador.
Para
o professor da Universidade Federal do ABC e especialista em educação Fernando
Cássio, é preciso haver um debate sobre o aproveitamento do atual ano.
“Se
a gente tiver de abrir mão do ano letivo para isso [garantir formação
adequada], é o que deveríamos fazer. O ano letivo não deveria ser prioridade”,
explica Cássio. “A pandemia exibe em praça pública a desigualdade, pobre morre
mais do que rico, mas mostra também a desigualdade na educação.”
Empenho
pessoal para contornar desafios
Apesar
de PE ter criado uma plataforma com aulas remotas, Rosemere Medeiros, gestora
de uma escola estadual, manda ela mesma mensagens pelo WhatsApp aos alunos para
avisar quando há conteúdo novo na plataforma.
Ela
conta que chegou a acionar um representante de turma para que tentasse
incentivar o colega a participar mais da aula. "Vimos estudantes que não
estavam interagindo nas aulas e pegamos o representante de turma para conversar
com o colega. É um jovem sensibilizando o outro para o quanto é importante
[estudar]", afirma.
Em
SC, o professor de educação física Luis Hellmann, por exemplo, usa vassouras e
materiais recicláveis para gravar vídeos explicando aos alunos como praticar
exercícios em casa. "As dificuldades foram: conhecer as ferramentas e as possibilidades
que elas nos dão; e o distanciamento com os alunos."
FONTE: G1
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